Neoliberalismo e financeirização da Amazônia

Imagem: Paula Nardini
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Por JOSÉ RAIMUNDO BARRETO TRINDADE*

A financeirização da economia política brasileira, somada a crescente mercantilização da região amazônica, subordinada a regras de rentismo e concentração das terras

A década de 1990 estabelece um conjunto contraditório de políticas de intervenção econômica estatal sobre a Amazônia brasileira. A crise econômica que se estabeleceu ao final do regime militar, marcado pela alta da dívida pública externa, paulatina falência do Estado brasileiro e crise de estagnação econômica e hiperinflação, levou ao recrudescimento das ações do Estado referentes as políticas de exploração dos recursos minerais, energéticos e das terras agriculturáveis da região, o que não implicou na extinção das políticas de renúncia fiscal e/ou de financiamentos públicos que beneficiavam fundamentalmente o grande capital centrado nessas atividades.

Como bem notou, com certa antecipação no tempo, o professor Otávio Ianni (1979, p. 237), o “que predominou no desenvolvimento capitalista extensivo havido na Amazônia foi a política de produzir para exportar”. Após a falência do regime militar, diga-se falência fundamentalmente econômica, o aprofundamento dos desequilíbrios nacionais do balanço de pagamentos, encetou uma dupla lógica sobre o amplo território nacional: a expansão da produção agrária para exportação e a intensificação dos esforços de extração mineral. A Amazônia se tornou na virada da década de 1980 o maior espaço condizente com o padrão econômico que o regime militar decadente legava a democracia liberal restrita brasileira.

Na segunda metade dos anos 1990, as políticas neoliberais adotadas pelo governo brasileiro envolveram diversas mudanças estruturais, incluindo o processo de abertura comercial, a desoneração das exportações e a redução da participação estatal na economia, que culminou com a privatização de várias empresas estatais, incluindo a Companhia Vale do Rio Doce em 1997. A privatização da maior mineradora latino-americana teve e tem um conjunto de repercussões sobre a região, com notáveis repercussões nacionais.

Aliado ao processo de exploração mineral e privatização característicos do período, observa-se também a expansão do mercado de terras na Amazônia. O texto que segue explora a dinâmica que consideramos siamesa: a financeirização da economia política brasileira, somada a crescente mercantilização da região amazônica, subordinada a regras de rentismo e concentração das terras. Para tratar esses elementos nos utilizaremos autores já estabelecidos, como o citado Otavio Ianni (1979), mas teremos também a base de apoio do trabalho intelectual do professor Francisco de Assis Costa (2012), um dos autores contemporâneos mais lúcidos no que se refere a análise da “problemática amazônica.

A lógica econômica dos anos 1990 em diante são estabelecidos desde quatro frentes de ação do capital em consonância com o Estado brasileiro: (i) primeiramente e, tanto ou mais negligenciado pelas análises, refere-se ao poder herdado pela antiga estatal Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) e concedido aos setores de apropriação privadas nacionais e internacionais, especialmente a enorme transferência de terras para controle privado e ganhos especulativos com a manipulação dessas terras; (ii) os movimentos de apropriação de terras por segmentos da produção de grãos em grande escala, algo que se tornará visível nos movimentos de concentração das terras; (iii) o estimulo creditício, desde os bancos estatais, para os grandes produtores e latifúndios, intensificando a capacidade de compra e concentração de terras; (iv) por fim e mais que central, esse conjunto de movimentos estabelecem a condição econômica de financeirização da Amazônia, inclusive com o uso de ferramentas pretensamente progressistas, mas cuja base é a apropriação das terras, a espoliação da natureza e a destruição de culturas locais, o exemplo mais conhecido são os diversos títulos e derivativos de exploração ou proteção ambientais (REDD+, entre outros).

A década de 2000 representou um período de forte expansão da produção de commodities no Brasil, impulsionada pela expressiva alta dos preços internacionais (absolutos e relativos) relacionado com o efeito-China e outros fatores como custo, taxa de câmbio e financeirização (TRINDADE&OLIVEIRA, 2017). No caso das commodities minerais, o fluxo internacional se desenvolveu muito com o aumento da demanda chinesa a partir do início década passada, mantendo taxas elevadas de crescimento apesar da crise de 2008/2009.

Seguindo o impulso da forte valorização das commodities minerais no mercado internacional, na década de 2000 as exportações de minério de ferro do Pará aprestaram uma taxa de crescimento de 7,4% ao ano ente 2000 e 2010, com o valor das exportações saltando de US$ 681 milhões para expressivos US$ 6.900 bilhões tendo seu preço médio (dólar/ton) alcançado um aumento de 91,23% ao ano, conforme gráfico abaixo.

Exportação e Valor Exportado de Minério de Ferro pelo Estado do Pará (1997 – 2015)

Fonte: SECEX/MDIC, Sistema AliceWeb. Elaboração própria.

Tomando como referência o intervalo de 2005 a 2015 o volume exportado mais do que dobra, atingindo um pico de 123,7 milhões de toneladas no ano de 2015, o que representou um crescimento de 10,3% ao ano no período. Com um crescimento exponencial desde 1997 (ano de privatização da CVRD), em fevereiro de 2011 o preço internacional do minério de ferro alcança seu maior nível: US$ 187 dólares/ton. métrica seca, mas mesmo que venha apresentando oscilações nos último dez anos, mas mantêm-se acima de US$ 100 dólares (Fonte: Index Mundi. Acesso: https://www.indexmundi.com/pt/pre%E7os-de-mercado/?mercadoria=min%C3%A9rio-de-ferro).

Enquanto os chineses estão lavrando minério de ferro com teores cada vez mais baixos e com custos de produção elevados, atualmente em torno de US$ 100/ton. No Brasil a matéria prima é lavrada a uma média de US$ 20 por tonelada, sendo que nas minas de Carajás, o minério com teor de 66% de ferro, pode ser lavrado a US$ 15/ton (TRINDADE&OLIVEIRA, 2011; CRUZ&TRINDADE, 2021). Considerando a relação entre as minas chinesas (minas de menor produtividade e qualidade) e as minas de Carajás, pode-se estimar, somente aproximadamente, a elevada renda diferencial que a Companhia Vale se apropria. A renda suplementar pode ser vista como o diferencial entre os custos de produção das minas de Carajás e os custos de produção das minas chinesas, assim considerando os valores de 2010 apresentados pela Vale referente a Carajás, temos uma diferença de US$ 85. Nestes termos, maior a diferença entre os custos de produção, maior o lucro suplementar resultante de Renda Diferencial I, resultante da qualidade do minério e da escala de produção possível, elemento central para viabilizar a estrutura de logística necessária.

No caso das commodities minerais, o que realmente afeta a oferta é a capacidade produtiva existente e os custos de produção, assim, dado que a capacidade produtiva é estabelecida pelos limites naturais de produção (volume minerário), oscilações na tendência de crescimento da demanda podem deixar a indústria de mineração com capacidade ociosa, implicando na necessidade de redução de custo. Por outro, um crescimento inesperado e acelerado da demanda pode elevar os preços de mercado ao ponto de tornar viável operação de minas com custos de extração altos ou crescentes e por período relativamente longo, gerando rendas diferenciais para as minas de maior produtividade.

Essas características estabelecem três movimentos notáveis e problemáticos: (i) primeiramente, as plantas de extração mineral amazônicas são de muito baixos custos, não por conta de aspectos tecnológicos, em primeiro momento, mas pelas características de extração e teor do minério, assim as minas podem ser exploradas até sua exaustão, pois sempre estará com custos muito abaixo da média d oscilação dos preços internacionais; (ii) a desregulação econômica (fiscal e ambiental) brasileira tornam a Amazônia um centro de exploração expansivo, sendo que a capacidade extrativa se torna espoliativa e degradadora da natureza até o limite da exaustão natural; (iii) esses elementos se somam a condição mais notável desses últimos anos, que são os ganhos rentistas, a base de produção se torna somente o nexo para transferências crescentes e de curto prazo dos dividendos a serem repassados aos controladores acionários da empresa.

O mercado financeiro foi o grande beneficiário com a privatização da Companhia Vale do Rio Doce, suas ações passaram a ser comercializadas a partir de 2000 na Bolsa de Valores de Nova York (NYMEX), fato que alterou completamente o caráter da empresa, que passou a integrar o processo de financeirização das commodities. Com a elevação dos preços, o minério de ferro passou a ocupar cada vez mais espaço na balança comercial brasileira. Em 2013 o lucro líquido gerado pela empresa foi de US$ 406 milhões, o que permitiu que fossem distribuídos aos acionistas US$ 4,5 bilhões em dividendos. Os dividendos distribuídos pela Companhia Vale estão entre os maiores distribuídos entre as “players” internacionais: entre 2011 e 2022 a mineradora distribuiu para os controladores, na forma de dividendos e JCP (juros sobre o capital próprio) cerca de 132 bilhões de reais (conferir: http://www.vale.com/brasil/PT/investors/equity-debt/dividends-ise/Paginas/default.aspx).

A lógica rentista que impulsiona a mineração na região se mantém baseada na utilização de vantagens comparativas decorrentes de acesso privilegiados aos recursos naturais a baixo custo, facilidades creditícias e tributárias, elevada relação capital/trabalho e baixa difusão tecnológica. Articulada a dinâmica global de acumulação e de financeirização das commodities minerais, os procedimentos industriais padronizados da mineração do ferro não necessitam interagir (salvo em situações especificas) com outros arranjos produtivos e com a diversidade local e regional reforçando a concentração de rendas e as desigualdades territoriais. A persistência da mineração industrial (não apenas do minério de ferro) em bases primário-exportadora, pouco contribui para internalizar dinâmicas econômicas, sociais e ambientais duradoras e nesse sentido, não constitui vetor sustentável de desenvolvimento local e regional de longo prazo.

Cabe reforçar que os controladores capitalistas recebem lucros extraordinários como forma de perpetuidade pelas vantagens minerárias que passam a dispor desde a concessão do direito de lavra pelo Estado (após a privatização), pois o subsolo passa a constituir mero espaço de fruição de bem apropriável privadamente, por mais que a legislação estabeleça a lavra enquanto concessão pública. Assim, os controladores capitalistas minerários se apropriam da renda diferencial possibilitada pelas minas de qualidade superior encravadas no subsolo amazônico, o que explica o alentado volume de dividendos distribuídos para os controladores internacionais, base do atual processo de financeirização do capitalismo, onde a Amazônia, suas minas e suas terras estão no centro do processo mundial.

Aspecto que deve ser ressaltado é que o nível desse lucro suplementar é dado pela diferença entre a produtividade individual e a produtividade média, e o preço de produção que prevalece dentro da indústria mineral. Porém essa força natural não é a fonte da riqueza acrescida (mais-valia) e sim somente sua base natural, sendo que a circulação do capital é o que proporciona esse processo, dado a crescente apropriação e transformação em elemento do processo reprodutivo de novas jazidas minerais de teores, facilidade de exploração do filão mineral e localização da mina em relação aos principais centros de demanda internacional.

Concomitante a financeirização do subsolo, cuja apropriação passa a ser quase visceral, observa-se a mercantilização da terra em larga escala, algo que trataremos em texto próprio, pela importância e papel que cumprirá na próxima fase de reprimarização da economia brasileira, com repercussões de grande monta sobre o Brasil e o mundo.

*José Raimundo Trindade é professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA. Autor, entre outros livros, de Seis décadas de intervenção estatal na Amazônia (Paka-tatu).

Referências


TRINDADE, José Raimundo Barreto e OLIVEIRA, Wesley Pereira de. Especialização produtiva primária e meio ambiente em período recente na Amazônia. In: Novos Cadernos do NAEA, Vol. 14, N. 02, 2011. Acesso em: https://periodicos.ufpa.br/index.php/ncn/article/view/539.

TRINDADE, José Raimundo Barreto e OLIVEIRA, Wesley Pereira de. Padrão de especialização primário-exportador e dinâmica de dependência no período 1990-2010, na economia brasileira. In: Ensaios FEE, Vol. 37, N. 04 (2017). Acesso em: https://revistas.planejamento.rs.gov.br/index.php/ensaios/article/view/3435.

CRUZ, Adejard Gaia e TRINDADE, José Raimundo Barreto. Amazônia Paraense: dois séculos de extrativismo e especialização primário-exportadora. In: Revista de Economia Regional, Urbana e do Trabalho, Vol. 10, N. 02, 2021. Acesso em: https://periodicos.ufrn.br/rerut/article/view/27428.

IANNI, Octavio. Ditadura e agricultura. São Paulo: Civilização Brasileira, 1979.

COSTA, Francisco de Assis. Elementos para uma economia política da Amazônia. Belém: NAEA, 2012.

 

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